O Predestinado (“Predestination”)

Talvez um dos filmes mais inteligentes de 2014 é o retorno da parceria entre o ator Ethan Hawke e os irmãos Spierig que também dirigiram com ele “2019 – O Ano da Extinção”. Hawke é um agente temporal que viaja no tempo para prevenir os crimes antes que estes aconteçam. Na sua última maratona de viagens antes de se aposentar e determinado a encontrar um terrorista que vem cometendo atentados desde a década de 60, ele vai para os anos 70 encontrar com Jane (Sarah Snook da comédia “Not Suitable or Children”), uma mulher masculinizada que teve sua vida destruída por um homem, além de uma série de revezes e pode ser a chave para que o agente encontre o terrorista. Tudo sob a observação de seu misterioso chefe da agência temporal, Sr. Robertson (Noah Taylor de “O Duplo”).

O roteiro não hesita em mudar o foco da narrativa em vários momentos para guiar ou confundir o espectador, bem como para fazer algumas revelações bombásticas que acontecem a cada momento. Se Hawke está corretíssimo no papel, a ainda desconhecida Sarah Snook tá um banho de interpretação como uma mulher martirizada pelo seu próprio destino e as transformações físicas e emocionais que ela passa são sensacionais.

Mais interessante é que apesar de ser uma ficção científica e brincar com conceitos como paradoxo temporal, também é extremamente econômica tanto em efeitos especiais, como na própria história que mostra praticamente apenas o mínimo necessário para se juntar as peças do quebra cabeças. Com o número grande de reviravoltas será normal o espectador se atrapalhar no quem é quem ou quando é quando. Por isso a produção deve ser vista com muita atenção, pois qualquer piscada pode tirar o publico do caminho certo.

O Predestinado” é uma das melhores surpresas do ano e faz o cinéfilo pensar muito além do filme.

Muita gente está se perguntando o que realmente aconteceu, então vamos à minha leitura de “O Predestinado”, a qual pode não está correta, mas é a que faz mais sentido até agora, baseado em tudo o que li. Como contém SPOILERS, só leia depois de ter visto o filme:

Ok, o que todo mundo sabe é que John (Hawke) é Jane (Snook) e que no curso da vida dele(s), ele se torna o terrorista. O mais interessante é que a primeira pista acontece logo no início do filme quando no bar, Jane tenta acender um cigarro e é ajudada por John, cada um com seu isqueiro, porém é o MESMO ISQUEIRO. Ainda passando pelo que muita gente pescou, o fato de que logo no fim, a maleta do tempo de John apresenta o erro significa que ela ainda pode ser usada e é por lá que ele viaja para fazer os ataques, certo? Mas ainda não chegamos lá.

Agora vamos falar de alguém que tem um papel fundamental na trama: Sr. Robertson. Ele é ninguém menos que o orquestrador de toda a missão e aparece em momentos cruciais, quando John ou Jane parecem prestes a se desviarem de seu destino. Há um momento em que Jane e pergunta em que ano Sr. Roberston fica e John responde que é na década de 80. Então cremos que o “presente” se passa na década de 80. Alguém reparou que Sr. Robertson não muda nada suas feições desde a década de 60 quando recruta Jane para a tal agência espacial até a década de 80? Ou seja, ele na época do recrutamento e antes de qualquer intervenção de John também estava viajando no tempo! Assim, o plano do curso da vida de Jane/John foi arquitetado por Robertson!

Mas porque ele faria isso? E essa é a resposta bombástica: Robertson, John e Jane são a mesma pessoa! Ou alguém acha coincidência que o John de Ethan Hawke também tenha um bigode.

Antes da explicação definitiva, vamos ainda tirar mais algumas partes do filme: logo no início aparece a pergunta “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”, no que se responde “o galo”. Isso denota que mesmo no paradoxo temporal, há um orquestrador por trás. Na cena final quando John vê a lista de compras de explosivos, onde aparece o nome de Robertson; até nos segundos finais quando seu personagem mais velho diz com todas as letras “Somos todos Robertson”. E ainda no último ato, há uma passagem onde se diz que o governo só conseguiria financiar a agência se houvesse crimes graves cometidos no passado (como atentados) e portanto era de interesse de Robertson esses crimes para que os próprios justificassem o investimento.

Agora sim, vamos à explicação: primeiramente entendam que no filme vivemos numa realidade onde nos anos 80, alguém descobriu como viajar no tempo e daí surgiu essa agência, da qual Robertson parece ser a peça chave e que esta agência não é a mesma para a qual Jane foi recrutada em sua juventude. Então estamos lidando com uma década de 80 alternativa muito mais avançada do que a nossa. Robertson nasceu Jane com o mesmo problema genético que a levou mais tarde a ser masculinizada, porém provavelmente de pais normais que a doaram para um orfanato. Sua obsessão era fazer a diferença e entrar numa agência do governo. Quando ele descobre nos anos 80 sobre a viagem no tempo, sua obsessão é tamanha que ele arquiteta um plano extremamente complexo.

Primeiramente, ele mesmo volta no tempo e comete os atentados. Isso já justifica a manutenção de sua agência. Só que ele se vê diante do dilema que a partir do momento que a agência serve para capturar terroristas como este, em algum momento um agente iria voltar e descobrir que o próprio Robertson é o terrorista. Como escapar dessa sinuca? Resposta: o agente teria que ser ele mesmo. Só que para que isso acontecesse ele teria que reconstruir toda a sua vida novamente, através de mudanças que levassem ao mesmo resultado, porém com outro ideal. E com a vantagem de que Robertson saberia exatamente como ele mesmo (na pele de John ou Jane) iria agir o que daria tempo de reagir nos momentos prestes aos atentados.

Então ele passa a fazer viagens no tempo para reconstruir sua própria vida, acrescentando cada revés que moldaria a personalidade de Jane/John (que é a sua). Mas como fazer para que nessa reconstrução ele mesmo não sofra com o novo futuro? É aí que ele cria o paradoxo: ele faz com que o seu nascimento seja o resultado da interação da mesma pessoa, ambas unidas pela viagem temporal, o que transforma o processo num ciclo, do qual ele se expurga sem desaparecer e dá mais liberdade para moldar seu eu no passado (John/Jane). Veremos como ele faz isso a seguir.

Robertson foi o primeiro que levou o bebê para o orfanato e o primeiro que recrutou Jane já masculinizada e ainda antes de virar John. Esse recrutamento aconteceu em algum momento da década de 70 e assim fez com que ela pulasse para os anos 80 (esse pulo, inclusive é fundamental para a trama). Daí ele a envia para caçar o terrorista que, como é o próprio Robertson, acontece o episódio em que ela sofre queimaduras no rosto, entrando aí o ator Ethan Hawke para interpretar essa nova fase. Mas como o rosto de Robertson não muda então durante o filme? Porque quando ele aparece, já estamos na viagem derradeira e esses fatos já tinham acontecido. Provavelmente seu rosto era sim diferente.

E daí veio a primeira grande sacada: Robertson faz com que John recrute Jane antes da época em que Robertson a recrutou, o que automaticamente apaga o fato da linha do tempo, tirando os vestígios da interferência de Robertson.

Agora a segunda grande sacada: no momento em que Jane conhece o homem que viria a engravidá-la dela mesma, na verdade ela conheceu Robertson. Ao ser enviado para a missão, John leva a Jane masculinizada a conhecer ela mesma (em versão feminina) pouco antes de Robertson fazê-lo e – como Robertson antecipou – tem a mesma reação e o resultado é o mesmo. E mais uma vez se muda a linha de tempo muda e expurga a participação de Robertson. É por isso que muita gente se perguntou porque na viagem no tempo a Jane masculinizada não viu uma cópia dela mesma conhecendo a Jane feminina.

E finalmente a terceira sacada: quando John sequestra o bebê (que é Jane e por tabela ele próprio), ele o faz antes de Robertson na primeira rodada o que de novo altera a linha do tempo e tira a participação de Robertson. Vejam que quando John hesita em tirar a criança do hospital, Robertson já se encontrava lá para se certificar que John iria cumprir a missão que lhe foi dada.

Ou seja, Robertson estava presente em todos os momentos para garantir que suas personas passadas iriam cumprir os passos que ele orquestrou! No momento em que Robertson fala a John sobre os efeitos colaterais por conta do excesso de viagens ao tempo, ele já está dizendo ao espectador que de alguma forma John ficará paranoico e desgostoso com a vida o suficiente para querer se vingar da sociedade.

Olha só que brilhante: os atentados que John vai cometer já não são mais os mesmos que Robertson cometeu. Assim, Roberston conseguiu apagar por completo seu rastro e conseguiu continuar existindo porque no momento em que Jane salta para os anos 80, a lacuna de tempo faz com que a vida de Robertson continue independente dos acontecimentos passados, pois eles estão concentrados entre os anos 60 e 70, tornando isso um ciclo. E finalmente quando John mata sua versão mais velha, John continuará existindo nos anos 70 (visto que ele é o jovem), impedirá o último atentado, enquanto paralelamente nos anos 80 Robertson também estará vivo por causa do gap temporal.

Está longe de ser simples, mas este é o verdadeiro paradoxo. Explicar o paradoxo requer algumas inferências tais quais serviram, por exemplo, para tecer explicações em Interestellar, já que a viagem no tempo é tão misteriosa para nós como entrar num buraco negro. O lance é que essa seria a única (senão uma das únicas) explicações que fazem total sentido e assim fecharia todas as pontas da história. Se gostaram, comentem! Abraços!

Ficha Técnica

Elenco:
Sarah Snook
Ethan Hawke
Noah Taylor
Elise Jansen
Cate Wolfe
Freya Stafford
Alicia Pavlis
Christopher Kirby
Alexis Fernandez
Rob Jenkins

Direção:
Michael Spierig
Peter Spierig

Produção:
Paddy McDonald
Tim McGahan
Michael Spierig

Fotografia:
Ben Nott

Trilha Sonora:
Peter Spierig

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