Corra! (“Get Out”)

Confesso que a primeira vez que vi o cartaz de “Corra!” eu jurava que era um filme de comédia. E a coincidência é que desde já um dos melhores filmes de terror desse ano foi escrito e dirigido por um… comediante! Sim, Jordan Peele, durante anos foi junto com seu amigo Keegan-Michael Key o protagonista da série cômica “Key & Peele” e ainda estrearam no cinema com a ótima comédia “Keanu”. Impressiona o tato para um gênero tão sombrio.

Ele conta a história de Chris (Daniel Kaluuya de “Sicário”) que namora Rose (a desconhecida Allison Williams) há meses e finalmente eles viajam para conhecer os pais dela que moram no interior. É claro que numa vizinhança predominantemente branca e com pais tradicionais, Chris teme não ser bem aceito por ser negro. O que ele não imagina é que essa comunidade esconde segredos que vão muito além da sua cor.

O roteiro é impecável em dotar cada minuto de projeção com relevância. Nada é colocado por acaso, desde o início quando o casal sem querer atropela um pequeno animal, até os diálogos inofensivos que os personagens travam numa festinha na casa dos pais de Rose. Ele é muito inteligente em causar no espectador o mesmo que causa ao protagonista: aquela sensação de que alguma coisa está errada, mas talvez seja apenas uma cisma, deixando tudo em suspenso para que as reviravoltas se revelem gradativamente no terceiro ato.

E se os dois primeiros atos primaram por criar a tensão, seja na dinâmica entre os personagens, em sustos bem dados e sem manipulação ou até na trilha sonora arrepiante do novato Michael Abels, o último ato, não só libera essa tensão de uma forma explícita sem excessos, como também resolve todas as pontas soltas a ponto de dar vontade de ver tudo de novo apenas para ter um novo olhar do que se passou. Além disso, traz uma perfeita satisfação ao espectador, coisas que poucos filmes do gênero têm feito hoje em dia em prol de desfechos mais assustadores que se revelam apenas menos interessantes.

Outro destaque – o que deveria ser óbvio – é a forma com que o tema do racismo é tratado, onde o próprio filme subverte o que se espera quando há mais uma admiração do que uma repulsa entre a comunidade e o Chris, o que leva o espectador a cair em si de forma mais impactante quando a verdade vem à tona. Talvez tão surpreendente quanto o desvelar da trama é a capacidade do diretor de colocar uma dose de senso de humor escrachado sem jamais prejudicar a seriedade do terror. Ele faz através do desconhecido LilRel Howery que interpreta o melhor amigo de Chris. Ele praticamente rouba todas as cenas que participa, que não são muitas, mas que algumas são chave (a cena próxima do filme é absurdamente hilária, arrancando gargalhadas).

Mas como pode essa dose de humor num filme de terror funcionar? Da mesma forma que tudo funciona: com um roteiro inteligente e disruptivo, com tudo na hora certa, atores comprometidos e detalhes que enriquecem a narrativa numa condução de fazer inveja a veteranos do gênero. Simplesmente imperdível.

Curiosidades:
– A inspiração de fazer o filme veio de um stand up do Eddie Murphy quando ele contava uma versão cômica de um negro conhecendo os pais de sua namorada cômica.
– Para quebrar o gelo, Jordan Peele muitas vezes dirigia o filme imitando o comediante Tracy Morgan, o ator Forest Whitaker e o ex-presidente Barack Obama.
– A voz na TV que diz “A mente é uma péssima coisa para se desperdiçar” foi narrada pelo próprio diretor.
– O grande amigo do diretor Jordan Peele, Keegan-Michael Key, aparece numa foto de um álbum de jogadores de basquete próximo ao final.
– O nome da família Armitage vem de um conto de terror de HP Lovecraft.
– Há uma cena no aeroporto em que chamam o vôo 237. É uma homenagem ao quarto 237 do clássico de terror O Iluminado de Stanley Kubrick.
– Uma das versões do pôster é uma homenagem invertida ao filme fracês, O Ódio. Veja abaixo:

SPOILERS – SÓ LEIA ABAIXO SE VOCÊ JÁ TIVER VISTO O FILME!!!

– O atropelamento do animal no início já é um indício de como a infância de Chris se desdobrou e como isso vai influenciar suas decisões no filme.
– Quando a polícia pede os documentos de Chris e Rose intervém, não é porque ela está defendendo o namorado negro do policial branco, mas porque ela não queria deixar nenhum registro de que ele estava viajando com ela, por motivos que se revelarão óbvios.
– Quando o pai de Rose fala que seus criados estiveram sempre com eles, na verdade tem um significado dúbio, já que os criados são seus próprios pais em corpos abduzidos. O mesmo acontece quando ele entra na cozinha onde está a criada e diz que gosta de “guardar” um pedacinho de sua mãe em casa.
– A grande ironia do filme é que Chris é salvo ao fazer algo que os negros eram obrigados a fazer na época da escravidão: catar algodão (na época da escravidão, das plantações; no filme, da poltrona).
– O criado Walter – na verdade o avô de Rose – estava correndo a noite como exercício pela obsessão por causa de sua derrota das olimpíadas em 1936.
– No final você entende porque os demais personagens negros da comunidade ou usam chapéu ou usam peruca, como a criada Georgina.
– Reparem como várias pessoas perguntam dos dotes de Chris: se ele sabe jogar golfe, se ele luta bem, se ele é bom de cama e, por fim, sobre seus excelentes olhos para fotografia. Ao fim entendemos o motivo.
– O “lugar profundo” da hipnose é uma metáfora sobre a paralisia da sociedade negra em relação ao racismo, onde eles gritam, mas não são escutados.

Ficha Técnica

Elenco:
Daniel Kaluuya
Allison Williams
Catherine Keener
Bradley Whitford
Caleb Landry Jones
Marcus Henderson
Betty Gabriel
Lakeith Stanfield
Stephen Root
LilRel Howery
Ashley LeConte Campbell

Direção:
Jordan Peele

Produção:
Jason Blum
Edward H. Hamm Jr.
Sean McKittrick
Jordan Peele

Fotografia:
Toby Oliver

Trilha Sonora:
Michael Abels

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