O Dilema das Redes (“The Social Dilemma”)

Poucos filmes são tão necessários no contexto atual como esse. Para quem ler as linhas e entrelinhas, o documentário de Jeff Orlowski consegue explicar praticamente todas as situações comportamentais, políticas e sócio econômicas que estamos vivendo.

Ele mostra algo muito antigo e algo muito novo. Esse algo muito antigo é o fato de que todas as corporações tem por objetivo fazer com que seus clientes / usuários se viciem em seus produtos ou serviços, tornando-os necessários. É antigo porque basta pensar que a indústria do tabaco (e das drogas) coloca produtos químicos que literalmente viciam seus clientes; ou que – numa abordagem menos pesada – uma empresa como a LEGO cria temas cada vez mais assertivos para que seus clientes não deixem de comprar seus produtos, fazendo uma coleção infinita. Exemplos não faltam. Só que o algo novo é a plataforma e o escalonamento que o modelo de negócios das redes sociais conseguiu implementar.

E o documentário fala com ninguém menos que os próprios co-criadores e pessoas chave que participaram da criação desses algoritmos viciantes presentes no Google, Instagram, Facebook, Twitter, Whatsapp entre outras redes. Ex-executivos de todas essas empresas dão depoimentos muito acessíveis desse modelo de negócio e suas consequências. O diretor inclusive ainda criou um curta protagonizado por Skyler Gisondo de “Loucura do Tempo” que passa em paralelo para exemplificar a influência dos algoritmos na vida de uma pessoa comum. Não é a toa que a interface entre o algoritmo e o personagem lembra bastante a animação “Divertida Mente“, visto que praticamente funciona como um segundo cérebro.

A narrativa não deixa de exaltar os grandes avanços que a tecnologia dos apps e redes sociais atingiram (pedir uma condução com poucos comandos ou comida ou informações de qualquer lugar), mas urgem para os males que o uso errado pode causar, principalmente porque o interesse das empresas é justo esse uso errado ou em excesso. Dito isso, acredito que mais que uma resenha ou crítica, importante resumir os pontos principais do documentário.

De forma geral as redes sociais vendem a seus anunciantes uma certeza e assertividades cada vez maior sobre seus anúncios através de uma coleta massiva de dados de milhões e até bilhões de pessoas que usam suas redes. Quanto mais dados, maior o poder de direcionamento dos anúncios e mais certeiros eles serão. As redes sociais não precisam vender seus dados (apesar de se ter relatos de isso já ter acontecido), mas apenas garantir que o anunciante vai ter sucesso e cobrar cada vez mais pela garantia deste sucesso. Só que pra manter a roda girando e coletar todos esses dados é preciso que o usuário passe cada vez mais tempo conectado. E aí começam os problemas, pois os algoritmos são construídos para conhecer seu “cliente” melhor que ele próprio e ativar gatilhos emocionais inconscientes que o façam ficar conectado o máximo de tempo possível e mudar seu comportamento mesmo que um pouquinho para que ele tenha necessidades de produtos que ele não teria de outra forma, isto é, o bom e velho marketing só que com um Big Data por trás que o eleva a enésima potência.

A partir daí o filme elenca todos os problemas que isso causa que vão desde o simples vício até mudanças inteiras na política de um país:

Vício: ao conhecer o usuário melhor que ele mesmo, as redes conseguem enviar notificações e mostrar realidades que ativam seus gatilhos emocionais e provocam dependência de um constante monitoramento em tudo o que seus amigos estão fazendo e como estão interagindo. Quando essa dependência se sobrepõe a própria vontade do usuário, fazendo com que sua vida seja prejudicada por isso, temos aí o vício.

Depressão: o algoritmo também entendeu que quando mais aspiracional for seu conteúdo personalizado para cada usuário, mais ele vai buscar ser essa aspiração. Só que nada é real, visto que é um conteúdo cheio de filtros, curtidas robóticas que fazem as pessoas pensarem que nunca serão suficientemente boas para chegar no conteúdo que elas mesmas consomem. Isso dá início há uma série de transtornos psicológicos como depressão, ansiedade e outros que mudam e moldam um comportamento cada vez mais nocivo para a pessoa e quem convive com ela.

Fake News: as notícias falsas geralmente são feitas para ser sensacionalistas. A verdade é chata. Só que por conta disso, o algoritmo das redes entende que o consumo dessas Fake News mantém o usuário por mais tempo e assim faz com que elas sejam impulsionadas 6 vezes mais que as notícias verdadeiras (segundo o documentário), o que dá à verdade uma desvantagem impressionante, fazendo com que a mentira seja uma realidade alternativa por ser muito mais difundida e mesmo que depois se desminta, a verdade nunca terá o mesmo alcance que a Fake News.

Polarização: outra coisa que o algoritmo descobriu sobre a gente é que tendemos a ficar mais conectados com pessoas que pensam que nem a gente e com conteúdos dos quais somos mais afins. Então o algoritmo nos deixa cada vez menos expostos a idéias diversas e necessárias para a formação de um pensamento crítico. Assim cada vez mais nos afastamos de quem pensa diferente até chegar no ponto que os vemos como pessoas estranhas e inferiores. Chegamos a nos perguntar: “Como que esse idiota tem essa idéia se a verdade é a minha, já que todo mundo que conheço compartilha da minha verdade?”. Começa aí o perigoso jogo da polarização. Por isso que, por exemplo, a direita brasileira demoniza a esquerda enquanto a esquerda demoniza a direita, mas nenhum dos lados enxerga que o ódio vem de ambos os lados. Sempre é o do vizinho. Junte isso com o comportamento nocivo que discutimos na parte de depressão e aí você começa a ter amizades de longa data que se acabam, brigas em família nos grupos de Whatsapp, ofensas que ao invés de criticarem a idéia, desqualificam o ser humano, e assim uma escalada cada vez maior de intolerância e violência travestida de uma intelectualidade falsa, já que as redes mostram realidades diferentes e personalizadas para cada usuário.

Agora junte as Fake News nesse bolo e você terá uma quantidade cada vez maior de gente que acredita que a Terra é plana, que o homem nunca pisou na lua, que as vacinas não funcionam, que é só uma gripezinha, dentre as várias teorias de conspiração antigas e novas e que são cada vez mais difundidas porque, como já dissemos, a verdade é chata e a mentira dá mais IBOPE.

Mudança nas estruturas políticas e sócio econômicas de um município, Estado ou país: Vejam que apesar de dependerem de milhares de computadores com uma enorme gama de processamento, seus conceitos, explicados nesse texto, são relativamente simples. Agora imaginem que um grupo de pessoas saiba como esses algoritmos funcionam e que esse grupo consiga divulgar e difundir uma ou mais Fake News que possa atingir, por exemplo, um candidato a uma eleição; ou determinada ideologia; ou determinado grupo empresarial. As opções são infinitas. Se esse conjunto de Fake News for bem elaborado e bem difundido pelo próprio algoritmo das redes, é capaz de mudar a opinião e o comportamento de uma massa, resultando em mudanças de resultado de eleições, protestos cada vez mais violentos contra ou a favor idéias falsas e o aumento da polarização e do ódio entre o próprio povo e seus semelhantes. E como em muitos casos isso é de interesse de determinados governos (inclusive o nosso), essa realidade já está acontecendo no Brasil e em várias partes do mundo. Mas não se enganem: está acontecendo e sendo implementado pela situação e pela oposição.

Enquanto grupos formados por alguns desses executivos pela humanização das redes sociais luta para impor uma regulamentação, visto que este é o único segmento onde as regras não são claras (e daí as empresas se aproveitam de todas as brechas), eles também dão algumas dicas valiosas de como aproveitar melhor o que a tecnologia tem a oferecer:

1. Desligue todas as notificações de todos os aplicativos que você tem no seu celular e deixe apenas aqueles estritamente necessários para trabalho e afins ou mensagens diretas.
2. Desligue todas as notificações de grupos de Whatsapp, inclusive os de trabalho e crie o hábito de periodicamente checar sem que isso atrapalhe suas atividades atuais.
3. Nunca durma com o celular no mesmo cômodo.
4. Nunca cheque o celular no trânsito.
5. Nunca repasse uma notícia sem antes checar a fonte. Se não tiver tempo de checar, não repasse e depois cheque.
6. Procure se conectar com pessoas seja no virtual ou no real que tenham idéias diversas à sua. Procure entender essas idéias e as motivações por trás delas. Assim os algoritmos poderão entregar conteúdo diverso e melhorar seu pensamento crítico.
7. Nunca clique em conteúdo recomendados (por exemplo, vídeos do YouTube recomendados). Isso só faz com que o algoritmo entregue apenas aquilo que ele acha que você quer ver e impede você de ter contato com outros conteúdos e idéias.
8. Busque notícias em sites de notícias certificados e sérios como grandes veículos. Jamais busque em blogs e grupos de Whatsapp, a não ser que contenham links e fontes para os próprios veículos oficiais. Um dos pontos cruciais aqui é que quem quer desinformar o povo é justamente aqueles que falam mal dos grandes veículos e daí transformam suas Fake News em verdades na cabeça do usuário.

Espero que tenham gostado do texto e da análise. Obrigado!

Ficha Técnica

Elenco:
Tristan Harris
Jeff Seibert
Bailey Richardson
Joe Toscano
Sandy Parakilas
Guillaume Chaslot
Lynn Fox
Aza Raskin
Alex Roetter
Tim Kendall
Justin Rosenstein
Randy Fernando
Jaron Lanier
Roger McNamee
Shoshana Zuboff
Anna Lembke
James Fetter
Mary Fetter
Jonathan Haidt
Cathy O’Neil
Rashida Richardson
Renee DiResta
Cynthia M. Wong
Catalina Garayoa
Barbara Gehring
Skyler Gisondo
Chris Grundy
Sophia Hammons
Kara Hayward

Direção:
Jeff Orlowski

Produção:
Larissa Rhodes

Fotografia:
John Behrens
Jonathan Pope

Trilha Sonora:
Mark A. Crawford

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