Entrevista com Bruno Barreto (Parte 1)

O Cinecríticas, em parceria com a Rede Brazucah, traz em primeira mão a entrevista com o diretor Bruno Barreto.

Essa é a primeira de duas partes da conversa onde Barreto fala sobre sua carreira e, principalmente, sobre seu filme mais recente, Última Parada 174, que estréia nos cinemas em 24/10.

Entrevista

Como surgiu a idéia de fazer ÚLTIMA PARADA 174?
Em junho de 2000, quando ocorreu o seqüestro do ônibus em plena área urbana no Rio de Janeiro e sua transmissão ao vivo paralisou o Brasil, eu vivia em Nova York. Fiquei sabendo o que tinha acontecido pela imprensa. Em 2002, quando assisti ao documentário Ônibus 174, no qual minha filha trabalhou como assistente de produção, fiquei impactado e liguei imediatamente para o diretor José Padilha. Disse que estava desconcertado e cheio de perguntas, sobretudo quanto à mulher que assumiu Sandro como filho e foi a única pessoa presente ao seu enterro. Por que aquela mulher, tão simples, tão forte, mas também tão machucada, segurando uma rosa vermelha, estava convencida que era a mãe do Sandro?

E o que você descobriu?
Para começar, Padilha me disse que eu tinha acertado na mosca – sem dúvida a vida daquela mulher poderia ser um filme à parte. Depois de pesquisar, descobri que ela tivera um filho chamado Alessandro cujo pai ela não tinha certeza quem era. Todos os dias de manhã, ela saía para o trabalho e deixava o menino com a vizinha. Um dia, ao voltar, a vizinha e Alessandro tinham desaparecido. Ela passou a viver obcecada pela idéia de recuperar o filho. Um dia encontrou Sandro e o ‘adotou’. Fiquei tomado pela idéia de uma mãe em busca de um filho perdido e de um filho que precisava de uma mãe. O drama dessas duas pessoas em busca de afeto e que tentam sobreviver em condições totalmente desfavoráveis poderia acontecer em qualquer lugar e qualquer época – na Inglaterra de Charles Dickens, na França de Victor Hugo, no Brasil, no século XXI.

Como foi o desenvolvimento do projeto?
Com a idéia definida de falar dessa tripla orfandade – de uma mãe órfã de um filho, de um filho órfão de mãe, e ambos órfãos sociais – procurei Bráulio Mantovani. Apesar de ter sido o roteirista de Cidade de Deus que aborda a violência no Rio de Janeiro, na história que eu queria contar, a violência seria apenas pano de fundo, cenário de um drama humano. Nesta abordagem, o episódio do ônibus seria o trágico ápice da trajetória de Sandro, um acontecimento que funcionou como catalisador não apenas de uma tragédia pessoal, mas dos medos de toda uma população. Naquele fim de tarde, no Rio de Janeiro, todo mundo perdeu: o seqüestrador, as vítimas, a polícia e milhares de espectadores que testemunharam o desfecho pela TV.

Você teve algum contato com essa mãe?
Eu não tive, mas o Bráulio sim. Eu não queria esse contato para não ficar refém da realidade. A minha pesquisa foi o documentário, e a partir dele passei a imaginar uma história de ficção tendo por base o impacto que ele me causou.

Houve algum pudor em dar um tratamento ficcional a um fato real tão marcante?
De forma nenhuma. Muitas vezes, quando assistimos o noticiário na TV ou lemos os jornais, ficamos em estado de total perplexidade. E na maior parte do tempo, a realidade é totalmente surreal. Ironicamente, muitas vezes, uma abordagem ficcional dos fatos pode ajudar a tentar organizar um pouco a realidade e dessa forma, começar a entendê-la.

A história de Sandro e de sua mãe adotiva estão impregnadas de alta voltagem emocional – rejeição, ódio, amor, a possibilidade (ou não) de redenção. Sem falar que a história de Sandro é tristemente emblemática da trajetória dos menores abandonados, entregues à própria sorte e às leis da rua, com passagens por instituições e, mais tarde, prisões. Além disso, Sandro foi um sobrevivente da chacina da Candelária. Como você lidou com essas questões?
Sem medo de olhar a emoção de frente, não para manipular o espectador, mas na tentativa de radiografar os sentimentos dos personagens principais. O maior desafio foi escapar do melodrama. Eu queria tentar entender o que os personagens principais sentiram e, se possível, propor uma leitura objetiva da emoção sem cair em um resultado frio, cartesiano. Eu não quis reconstruir ou mostrar uma realidade distante, mas criar personagens que provocassem uma identificação e um envolvimento do espectador. Não se pode julgar essas pessoas. Eu não sei quais são as suas necessidades afetivas e as aceitei com todas as suas complexidades e contradições. No caso da chacina da Candelária, por exemplo, toda a filmagem foi feita do ponto de vista de Sandro e o maior desafio foi recriar o impacto do que aconteceu sem um tom espetacular, sensacionalista.

Apesar da carga dramática dos personagens, eles não apresentam um perfil maniqueísta.
Sem dúvida, este é um ponto fundamental. Procurei construir personagens matizados não apenas nesse, mas em todos os meus filmes. Tenho a expectativa de que o público empatize com os personagens e não apenas simpatize. Que compartilhem de suas vivências, sem julgá-los. Há momentos em que você gosta dos personagens, momentos em que você os odeia, e momentos em que você se sente desconfortável pela identificação com quem, supostamente, não deveria. Acho que um bom filme deve provocar esses sentimentos contraditórios. Há ainda uma outra leitura na trajetória de Sandro que me interessa: a promiscuidade hoje em dia entre realidade e ficção. Esta fronteira tênue é o subtexto de ÚLTIMA PARADA 174, ou seja, de como precisamos ser vísiveis, a qualquer custo, para legitimar nossas existências. E foi isso que Sandro fez em suas últimas horas de vida.

De fato, o seqüestro do ônibus foi transmitido ao vivo para todo o Brasil durante seis horas.
Um dos aspectos mais importantes da última seqüência – o episódio do ônibus – é o auge da teatralidade atingida pelo personagem de Sandro. O ônibus com os reféns se transformou no palco daquela macabra performance final de Sandro. Para tornar isso claro visualmente, escolhi filmar todos os exteriores – fora do ônibus – com câmeras de TV, colocando-as exatamente onde estavam quando o fato aconteceu, com um resultado que parecia material de noticiário. E filmei as cenas no interior do ônibus de muitos ângulos, em película, visando uma encenação mais cinematográfica. O resultado foi uma ruptura sutil, mas perceptível entre ficção e realidade. Quando Sandro sai do ônibus usando uma refém como escudo, misturei as cenas de vídeo e filme. A partir desse momento, não era mais possível distinguir entre ficção e realidade – que se misturaram de forma definitiva.

E continua…

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